Se você é forte e suporta Spoilers, confira nossa crítica de The Boys, série que nos mostra um pouco além do que pensamos conhecer sobre os super-heróis.
Atenção, esta é uma crítica COM SPOILERS sobre a série The Boys, se você não quiser saber sobre acontecimentos da série, você pode conferir nossa crítica SEM spoilers clicando aqui!.
Em um mundo repleto de séries, filmes, animações e dezenas de produtos baseados no conceito de super-herói, é realmente desafiador, para não dizer difícil, criar uma nova história envolvendo superseres que voam, tem superforça, soltam laser pelos olhos, etc.
Vale lembrar que a ideia de superhero nasceu nos EUA, com o Super-homem, e desde que o planeta Krypton explodiu e um único bebê alienígena escapou, houve uma multiplicação enorme de diversos personagens da mesma estirpe, e isso muito antes do famoso conflito entre Marvel e DC que existe hoje – tanto é que a chamada “era moderna” dos quadrinhos se consolidou justamente por trazer obras que satirizam ou parodiam este conceito, como “O Cavaleiro das Trevas’ de Frank Miller e “Watchmen”, de Alan Moore.
Na pegada dessa sobras mais radicais, surgiu a série em Hq do quadrinista Garth Ennis, famoso criador da serie Preacher e muito criticado pela sua exposição por muitas vezes gratuita de violência e cenas para maiores de 18 anos (muitos ainda hoje afirmam que ele praticamente usa tais cenas em todas as suas historias, para gerar audiência – e me atrevo a dizer que isso funciona) – e em The Boys isso não é diferente. Temos cenas de estupro, mutilações, cenas grotescas e muita sacanagem que permeia todas as obras do autor.
Por isso, sua transposição para a TV era realmente um desafio duplo – afinal, como criar algo diferente em meio à todas as produções existentes e ainda tomar cuidado para não parecer algo explícito demais.
Bem, senhoras e senhores, parece que a Amazon conseguiu mais uma vez.
Com uma historia ágil e que satiriza muitos estereótipos do gênero, a saga acompanha a jornada de Hugh e a heroína em ascensão, luz-estrela (Starlight, no nome original), ambos envolvidos com o supergrupo chamado Os Sete, que são claramente uma paródia nada disfarçada da Liga da Justiça, onde temos heróis visualmente deslumbrantes, mas totalmente imorais. Logo de cara, conhecemos o velocista Trem-Bala, no momento em que ele atropela (entende-se: transforma em purê humano) a namorada de Hughie, o que cria um ódio enorme tanto pelo herói como por todos os supertipos. Esse sentimento é a porta de entrada para ele ingressar no grupo peculiar que dá titulo à série. Os garotos são o time reunido por Billy Bruto (Butcher, no original, interpretado de forma genial por Karl Urban) com o intuito de liquidar os heróis – cada um dos membros, incluindo o próprio Billy, tem um motivo pessoal para lutar por essa causa aparentemente impossível, e é genial a forma como os atores mostram as sutilezas e diferenças que cada um deles nutrem um pelo outro. Assim, Billy, Hughie, o francês e leitinho se unem, apesar de suas diferenças (o discurso “motivacional” de bruto comparando o grupo às Spice Girls é hilário).
Ao mesmo tempo, vemos a pobre Annie, identidade secreta da luz-estrela, cujo sonho maior era se tornar uma heroína e salvar vidas, descobrindo que o mundo dos superseres não era bem como ela pensava. Da pior forma possível ela descobre que os heróis, além de serem sacanas e hedonistas, não passam de um produto da empresa multinacional Vought, que usa suas figuras em comerciais, filmes, merchandising, etc (o que ironicamente lembra muito o badalado universo cinematográfico da Marvel e seu recente anuncio de uma nova leva de filmes para 2020 e 2021). Com o tempo, o que era admiração acaba se tornando uma repulsa enorme, a partir do momento em que a figura do herói torna-se apenas algo para ser vendido.
Inevitavelmente, Annie e Hughie não apenas se conhecem, como iniciam uma perigosa relação (ele, bancando o agente infiltrado e usando ela para descobrir os podres da Vought, e ela vendo nele apenas um cara legal que não se importa em quem ela é). Em meio a tudo isso, os garotos investigam o real motivo do porque o Trem-Bala ter atropelado a namorada de Hughie, e acabam descobrindo uma conspiração para ocultar o misterioso Composto V (que pode soar como uma sátira bem maldosa do Elemento X, não?).
O grande barato em The Boys é que não existe certo e errado. Inicialmente, sentimos uma aversão enorme pelos heróis e acabamos torcendo involuntariamente pelo grupo de BILLY, e sim, nos sentimos culpados (da mesma forma que ficamos ao torcer por Walter White em Breaking Bad) ao perceber que os humanos são tão imorais quanto os heróis que estão caçando. Mesmo quando conhecemos a verdade por trás da esposa de Billy, ou sobre a criação clandestina de superbebês de proveta, ainda assim os roteiristas da série deixam bem claro que Billy apenas está usando seus amigos em prol de uma vingança pessoal, e acredite quando digo que ele é tão ou mais filho da mãe que o próprio Capitão Pátria (o garoto-propaganda da Vought, praticamente um Superman antiético). É interessante como, mesmo com tantos plots e personagens, a série consegue dar espaço para tratar de cada um e dar tempo de tela para cada uma das questões.
Desta forma, temos 3 arcos: Hughie e os garotos, Annie, e o arco envolvendo os heróis, com subplots interessantes como a da Rainha Maeve (parodia da mulher-maravilha e ex do Capitão pátria) e do Profundo (uma clara alusão ao Aquaman, a primeira figura que odiamos, e passamos a sentir pena – ou pelo menos é isso que a série tenta fazer). Até mesmo a trama envolvendo a estranha e possessiva relação entre a CEO da Vought e o Capitão é bem desenvolvida, e é realmente espetacular a construção da figura vilanesca deste último, que acaba a série mostrando que não é e nunca foi um mero peão a ser manipulado.
CONCLUINDO: The Boys entrega tudo que promete, em uma trama interessante e que sabe trabalhar cada um de seus personagens, conseguindo a façanha de ter boas atuações sem praticamente a presença de nenhum astro do cinema (come exceção do Karl Urban) – e ainda consegue adaptar uma serie que usa e abusa da violência para se promover de forma contida, porém, com doses muito bem empregadas de ação (e sabe disfarçar bem as limitações dos efeitos especiais). Outro fator que a diferencia é desconstruir a figura do super-herói, mostrando um lado mais sujo e humano de seus arquétipos, sem pender para nenhum dos dois lados da balança. A Amazon teve sucesso em representar toda essa atmosfera crua que reflete muito da sociedade em que vivemos, e ainda fecha o espetáculo com um excelente cliffhunger para a segunda temporada, já confirmada.
Podemos dizer que The Boys é uma das séries mais surpreendentes do ano, e, ao lado de Titans e Patrulha do Destino, uma das series derivadas de HQs mais fiéis e explosivas dos últimos tempos. Resta agora apenas esperar para ver se eles conseguem manter o ritmo e a narrativa nos próximos episódios.