As adaptações em quadrinhos tiveram uma longa história, e o príncipe-palhaço do crime – o coringa, maior arqui-inimigo do Batman e considerado um dos maiores vilões da cultura pop, já teve dezenas de versões em tela – seja no cinema, tv ou games, ele foi tão explorado que uma adaptação fiel acabou por se tornar um sonho distante para os fãs. Desde o coringa pueril do Cesar Romero dos anos 60 até a nova roupagem proposta por Jack Nicholson no filme de Tim Burton, passando pela atuação perfeita de Mark Hammil (sim, o Luke Skywalker) na série animada nos anos 90 – até chegarmos à performance trágica e monstruosa de Heath Ledger no segundo longa dirigido por Christopher Nolan e a versão light na pele do Jared Leto (não, a culpa nao foi dele). Sendo assim, milhares de questionamentos e dúvidas vinham sendo acumulados desde que o filme solo do vilão havia sido anunciado, com Joaquim Phoenix (Gladiador, Ela, O Mestre) na pele do protagonista e Todd Phillips (Se Beber não case) na direção. O resultado era uma incógnita, e muito se especulou sobre como funcionaria o filme, indo desde adaptações de A Piada Mortal, até diversas pirações dos especuladores pela internet afora.
Pois bem, o que o filme nos entrega é algo 100% fora do previsto. Não temos aqui um filme baseado em quadrinhos, tampouco uma obra enlatada e voltada para as massas, como as últimas adaptações de hqs lançadas. Nem sequer temos algo na linha das últimas produções da DC, como Batman Vs Superman, Liga da Justiça e Aquaman, filmes que constroem franquias e entram dentro dos chamados blockbusters. Coringa é um fruto direto do cinema dos anos 70 e 80, de obras seminais como Taxi Driver, Laranja Mecânica e O Rei da comédia, do qual empresta até mesmo o ator, Robert Deniro – no entanto, o resultado é algo novo, único e profundo. O filme narra a história de Arthur Fleck, contada de forma à maneira do cinema antigo – com problemas mentais, é comovente a forma como ele sempre busca no humor uma maneira de fugir de tudo que dá errado em sua vida, desde o trabalho como palhaço até a carreira como comediante, passando com a preocupação constante com a mãe, praticamente o único elo dele com sua sanidade. E somos conduzidos através da história de Arthur, como espectadores de uma tragédia grega.
E há muito de tragédia grega aqui. A atuação desconcertante de Joaquim – que perdeu cerca de 13 quilos para viver o personagem – nos leva para uma miríade de emoções distintas – alternando momentos de alegria, tristeza, sofrimento e ansiedade de forma natural e imprevisível, tornando o filme, que prossegue durante seus ??? minutos praticamente sem grandes sequencias de ação, muito interessante e contemplativo de se olhar. Vale a pena olhar o filme uma segunda vez e reparar no uso das cores, o clima criado pelos enquadramentos, e as músicas, que vai se alterando de forma radical até o drástico final. Quando a ação e a violência gráfica surgem, elas não são gratuitas, mas perfeitamente pensadas e colocadas no lugar certo. É possível dividir o filme em pelo menos três atos, algo similar à jornada do herói de Joseph Campbell – o homem perdido, a reviravolta, e a transfiguração. É fascinante, e ao mesmo perturbador, acompanhar o protagonista em sua evolução como psicopata, encontrando na destruição uma forma de se afirmar ao mundo. Neste sentido, o filme ecoa obras como Clube da Luta e Breaking Bad, em que o espectador por várias vezes se encontra torcendo pelo vilão, e se descobre culpado no final por ver a que ponto a maldade humana havia chegado.
Não à toa, Coringa tem atraído reações negativas ao redor do mundo por parte de críticos e cidadãos, que vem no filme um potencial para atrair mentes perturbadas e jogar o isqueiro, por assim dizer, em tanques de gasolina. Pois bem, sem entrar em méritos de condenar ou defender ninguém, mas o filme se propõe, apesar de se passar na década de 70/80, a fazer diversas críticas à sociedade atual. Assim como a decadente Gotham City mostrada no filme, o mundo de hoje carrega uma geração que busca por salvadores tanto em figuras políticas como em bandidos – exatamente como o personagem de Thomas Wayne (aliás, aplaudo de pé a iniciativa em inverter os valores e mostrar o lado fdp do pai do Batman) e o próprio Arthur, que se torna um ídolo sem nem ao menos compreender o que está acontecendo. Da mesma forma, pessoas e figuras são endeusadas e vilanizadas nas redes sociais, gangues se formam e a intolerância começa. O caos. o terceiro ato, quando os frutos plantados são colhidos e as consequencias são sentidas na pele. Neste ponto, a cidade funciona quase como um personagem coadjuvante, um complemento às mudanças que o protagonista sofre. E o filme, como um todo, ousa ao tocar em uma ferida que poucos aceitam olhar.
No final da segunda metade do filme temos, afinal, a transformação – quando o comediante fracassado e cheio de autopiedade sai de cena e o vilão emerge – sua entrada triunfal, com referências diretas da HQ O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, demonstra a evolução do personagem, e nos entrega o coringa mais complexo que os cinemas já testemunharam – apesar de sua proposta se distanciar de seu material de origem, é possível enxergar o coringa das hqs, seja na insanidade, na bizarra mistura de violência e humor – que choca o espectador, e logo em seguida, o faz rir – diferentemente da interpretação de Ledger (e vale destacar aqui, o filme o homenageia em vários momentos), baseada no caos, o coringa de Joaquim Phoenix vem do conceito-chave do clássico de Alan Moore e Brian Bolland – a loucura é a saída de emergência, e apenas um dia ruim pode fazer toda a diferença. Surpreendentemente, a mitologia do Batman – mesmo ausente – é explorada em diversos momentos, culminando com a famosa cena da origem do heróis – tão refilmada que acabara se tornando, de certo modo, um clichê – mas que surge no filme com uma nova roupagem e que o distancia muito do puro e simples fan service.
arte de Rafael Danesin
Concluindo, Coringa é um filme complexo, único e profundo, que vale a pena ser visto e revisto, e apreciado de diversos ângulos diferentes. Desde a excelente fotografia até a ambientação de uma Gotham suja e perdida, até a majestosa trilha sonora que é um personagem à parte, o filme carrega o mérito incontestável de trazer para a era do cinema pipoca uma produção herdeira de uma época onde o cinema era visto sob outra ótica, e pensado para ser algo marcante e inesquecível – por isso talvez o filme assuste o pessoal acostumado a ver espetáculos de CGI e batalhas grandiosas – mas garanto com certeza que os fãs de hqs e do próprio personagem podem ficar tranquilos. O coringa afinal ganhou seu filme definitivo.
Nota: 10/10